21 fevereiro 2007

Amantes*

Ariston Caldas

Chegou em casa de Dulce no início da noite. A casa estava fechada e tinha uma lâmpada acesa refletindo claridade por um vidro amarelo da porta da frente, realçando pequenas manchas cor de ferrugem. A rua estava escura e deserta, sem um pé de pessoa.

– Dulce! Dulce! – ele chamou assim. Instante depois a luz se apagou mas tudo continuou em silêncio.

Quando era menino, acordou assustado altas horas da noite sentindo os olhos como se estivessem grudados de goma, com sensação de quem não sabe onde está. O telhado era preto, as paredes eram pretas e nem uma réstia aparecia pela cumeeira, provavelmente era noite de escuro. O jeito foi gritar, assustando o pai e a mãe que dormiam num quarto ao lado.

Mas Dulce não sentia medo. Ela teria apagado a lâmpada, indo sozinha deitar-se na cama, pensando coisas a esmo, no escuro.

– Será que ela esta sozinha? – Indagou-se de súbito com o pensamento vadio. Sentiu ciúme e voltou a chamá-la. Numa casa em frente um sujeito barbudo abriu uma janela e tornou a fecha-la. Estaria curioso ou incomodado.

Lembrou de um vizinho da cara redonda e esparrada que morava parede-meia e se aprecia com um ajudante de caminhão que conhecera na infância. Já o vira conversando com Dulce no passeio e na conversa o sujeito apalpava um braço dela, a momentos. Lembrou que os quintais das duas casas eram separados por um muro baixo que tinha ao lado um pé de pitanga e, em cima, uns jarros com flores amarelas.

Teria ouvido pisadas dentro da casa que continuava escura como breu. Nem podia entrar para a varanda, toda lacrada a cadeado. Impaciente, afastou-se até uma esquina próxima e ficou de olho para um lado, para outro, confuso e nervoso. Voltou e chamou novamente, quase gritando. Ai ouviu ruídos na fechadura. Era Dulce destrancando a porta:

– Ô, gente! – Ela falou meio-assustada.

– Está surda! – Exclamou ele.

– Tava tomando banho – acrescentou Dulce.

– Por que apagou a luz?

– Fui me deitar – concluiu ela, contrafeita, trancando a porta que rangeu sutilmente.

A cabeça dele perturbava-se a cada instante cheia de interrogações. Pensou novamente no sujeito da cara redonda que residia ao lado. O muro que separava os dois quintais passou-lhe outra vez pelo juízo, queimando-lhe o miolo. Entrou para o quarto. Na cama, um cobertor desordenado, dois travesseiros desalinhados e uma toalha de rosto pendurada na cabeceira. “Alguém teria escapulido pela porta dos fundos” – maldou, rebuscando imagens criadas por sua imaginação embaralhada, cheia de cismas. Observou a posição dos objetos, dos móveis. Tudo no lugar de costume. Pensou farejar os panos da cama, mas passou um rabo-de-olho para Dulce e acanhou-se. Apalpou um braço dela – estava quente e enxuto. “Ela não tomou banho agora coisa nenhuma. Está mentindo”. Admitiu, já irritado.

O vizinho da cara redonda voltou a infernizá-lo pulando o muro baixo, cheio de flores, sustentando com uma mão o cós da calça despencando. Foi ao sanitário e viu bem que o piso do banheiro estava enxuto. “Ninguém tomou banho agora por aqui. Mulher é bicho do capeta!” – resmungou. Ao sair do sanitário, cravou um olhar duro para Dulce, mirando-lhe de cima a baixo. Ai o telefone tocou. Dulce atendeu dando-lhe as costas e falando muito baixo, não lhe permitindo ouvir coisa nenhuma. Depois, mordeu o lábio inferior, apertou o olho e desligou o aparelho.

Sem mais questionar nada com ela nem inquiri-la sobre coisa alguma, voltou para o quarto e deitou-se de papo para cima, jogando um braço encolhido sobre a testa.
Passou o resto da noite sem pregar um olho, virando-se de um lado para o outro, cheio de maldade e de dúvidas. Ao amanhecer tirou uma madorna e sonhou com o sujeito da cara redonda pulando o muro do quintal.

– Pilantra! – gritou, atordoado, já sentado no meio da cama. Dulce, de sono solto, mexeu-se de leve e ressonou profundamente, virando-se para a parede.

– Porra! – Acrescentou ele, já perfeitamente acordado.


Trecho do livro Linhas Intercaladas, de Ariston Caldas, que faleceu ontem, em Salvador. O escritor e jornalista nasceu em Ihambupe, norte da Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos.

Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico Terra Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna, foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau. Diário de Itabuna, entre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal
. Dedicou os últimos anos de sua vida à produção literária.

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