Eleição da discriminação
Do Valor Econômico
Porque são pobres, nordestinos e negrosMaria Inês Nassif
28/09/2006
Talvez por embutir um corte social no eleitorado inédito, este processo eleitoral transborda preconceitos. Primeiro, a análise do fenômeno sociológico do voto do pobre, descolado de formadores de opinião, derivou para o preconceito do "voto vendido" por um prato de comida, simbolizado pelo Bolsa Família. Depois, o voto nordestino foi colocado no mesmo saco do coronelismo, como se tivesse ocorrido uma negociação individual desse eleitor com o candidato a presidente. Agora, entrou em cena o voto dos negros (que, nas pesquisas, são a soma dos pretos e pardos). A última conclusão, derivada da pesquisa do Ibope da semana passada, é que os negros dão menos importância à ética que os brancos - e por isso tenderiam a eleger, em sua maioria, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Se a elite brasileira não jogar fora seus preconceitos, será difícil entender o que ocorre nessas eleições. Falta enxergar um pouco a realidade social desse país. A começar pela realidade dos negros, entre eles, em especial, dos pretos. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2005, elaborada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a partir da PNAD 2004 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), os negros representam 48% da população, mas são 66,6% dos 10% mais pobres e 15,8% dos 1% mais ricos. Os trabalhadores negros recebem cerca de 2 salários mínimos por mês, enquanto os brancos ganham 3,8 salários, em média. A taxa de analfabetismo dos negros é de 16%, mais do que o dobro da dos brancos, de 7%.
Isso não é tudo. A personificação do preconceito embutido na avaliação do voto do negro são as estatísticas de morte pela polícia. Segundo pesquisa de Marcelo Paixão, da ONG Fase, em 2001, enquanto os pretos representavam 11% da população do Rio, eram 32,5% dos mortos pela polícia; os pardos, que eram 34% da população do Estado, representavam 21,8% dos mortos pela polícia; e os brancos, 54,5% da população, eram 19,7% dos mortos pela polícia. O levantamento foi feito entre janeiro de 1998 e setembro de 2002 e os dados populacionais são do Censo de 2000. Segundo estudo coordenado pelo sociólogo Ignacio Canno para o Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005, a taxa de homicídio de negros , entre janeiro de 1993 e julho de 1996, era 1,9 vez maior que a dos brancos.
Por esse quadro, não precisa ser um especialista para concluir que a população negra está mais exposta aos benefícios do Bolsa Família e do aumento do poder de compra do salário mínimo. Ainda assim, dado o grau de pobreza do negro - além de 64% dos pobres, representam 68% dos indigentes, segundo números de 2001 - não parece que a situação dada seja totalmente satisfatória: 25% dos negros entrevistados pelo Ibope na semana passada se diziam insatisfeitos em relação à vida que levam, contra 21% dos brancos; 62% dos pretos se declararam satisfeitos, contra 69% dos brancos.
Processo eleitoral transborda preconceitosNa sondagem de intenção de voto, não parece que as preferências dos pretos se descolem dos índices dos mais pobres: na pesquisa espontânea, o presidente Lula teria 60% dos votos dos pretos entrevistados; entre todos que ganham até um salário mínimo, captaria 67% dos votos, e 54% entre os que ganham de 1 a 2 salários mínimos. Segundo a pesquisa, 64% dos negros aprovam a maneira como Lula conduz o país e 62% dos pardos também - contra 48% dos brancos. Os negros aprovam mais a administração Lula porque são negros, ou porque são pobres? Entre os entrevistados que ganham até 1 salário mínimo, 68% dizem que aprovam; dos que ganham de 1 a 2 salários mínimos, 59% responderam a mesma coisa. No Nordeste, 72% dos entrevistados afirmaram que aprovam a maneira como Lula vem administrando o país. Responderam isso porque são pobres, negros ou nordestinos? E o que a pergunta embute? A forma de administrar o país é qual?
Depois de perguntar em quem o entrevistado votou no segundo turno das eleições de 2002, o Ibope formula a seguinte pergunta: "Você votaria ou não votaria em um político acusado de corrupção, ou citado em algum caso de corrupção?". Respondem que votariam 7% dos brancos, 11% dos pretos e 8% dos pardos - o que, na linguagem de pesquisa, estaria dentro da margem de erro. À pergunta de qual o partido mais ético, o PT ganhou, com 18% - no Nordeste, 28% dos entrevistados tinham essa opinião; 26% dos negros e 19% dos pardos achavam a mesma coisa. Por que acham isso? Porque são pretos, pobres ou nordestinos? O PT ganhou também no quesito "menos ético": 31% dos entrevistados consideraram assim - no Nordeste e na faixa de renda familiar de até um salário mínimo, essa opinião decresce para 21% dos entrevistados. Entre os brancos, 34% acham que o PT é o partido mais corrupto; entre os pretos, 23% e, entre os pardos, 28%. Se pretos e pardos votam em sua maioria em Lula, e se consideram menos que os brancos que o PT é corrupto - e mais que os brancos que o PT é menos corrupto - por que então a conclusão de que Lula tem mais votos dos negros porque eles têm menos apego à ética?
Se a elite brasileira aprendeu só esse tortuoso travo racial de um processo eleitoral que é rico pelo que ele tem de novo, pobre deste país. Mais pobre que os pobres, os pretos e os nordestinos. Seria o caso dessa elite começar a tentar responder outras perguntas. A primeira delas é: por que ocorreu um corte social tão profundo nessas eleições? A segunda: por que os partidos não acompanharam esse movimento, muito pelo contrário, acabaram por facilitar a personalização desse corte na figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva? A última: por que a elite, em vez de fazer a reflexão sobre a realidade social do país, assume um discurso que pretende criminalizar a pobreza por uma escolha democrática? A escolha do pobre não é crime. Reflete anseios, um descaso secular, uma distância profunda dos ricos. É uma escolha racional.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
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