Fácil, pateticamente fácil
Domingos Matos*
Antes de mais nada, quero hipotecar minha solidariedade à família do menino carioca da classe média João Hélio, que foi morto barbaramente após ser arrastado por cerca de sete quilômetros por cinco bandidos que tomaram de assalto o carro em que estavam ainda sua mãe e uma irmã. Mas quero, também, me solidarizar com o sofrimento – não da família, mas da própria vítima –, do menor F. R. S., de 11 anos, que teve parte do corpo desfigurado por tortura provocada pelos próprios pais, Reginaldo Marcelino dos Santos e Adeilda Ramos da Costa, de Itajuípe. Também quero dizer que sou solidário à dona-de-casa Neci Maria de Jesus, mãe do estudante Lucas Moura de Jesus, 19 anos, que sonhava servir na Aeronáutica, mas foi assassinado no bairro Nova Califórnia, no começo deste ano.
A tortura sofrida por F. R. S. foi “justificada” pelo fato de ele ter comido um punhado de farinha com açúcar, provavelmente contra a vontade dos pais, que talvez (é uma suposição), não tivessem outra coisa para comer no dia seguinte. A morte de Lucas foi “explicada” pelo suspeito que confessou o crime, alguém conhecido como Neguinho do Amendoim, como resultado de uma briga no futebol. A do menino do Rio não teve muita explicação, até os bandidos estão comovidos. Mas claro que há relação entre os três casos, e o ponto de convergência é esse mesmo de que tanto se fala, a exclusão social de que foi vítima pelo menos uma das partes, quando não todas.
Justificada a minha condição de ser humano (seria “desumano” não se indignar com tanta violência), quero deixar clara também a minha indignação com a manipulação que a mídia faz sobre fatos como esse – do menino do Rio – para despertar sentimentos de solidariedade pelo Brasil e, de quebra, empurrar goela abaixo dos brasileiros “propostas” que nossa sociedade sequer tem base para debater, quais sejam a instituição da pena de morte e a redução da maioridade penal. Não se enganem: o que se quer, de verdade, é a volta da instituição pena de morte ao país. A redução da maioridade penal entraria na conta da negociação e poderia até ser esquecida. Com certeza, essa não seria mais uma instituição inoperante, visto que não faltariam crimes hediondos para “punição exemplar”.
Quando digo que nossa sociedade não tem base para debater temas tão polêmicos, o faço observando a própria realidade que nos rodeia, como os altíssimos índices de analfabetismo absoluto (11,60%) e analfabetismo funcional (74%), e observando também a alarmante incidência de analfebetismo entre a população carcerária (78% masculino e 69% feminino). Ora, num momento desses – de massificação televisiva e da imprensa em geral, além das correntes pela paz na internet – esses excluídos só não pedem, eles mesmos, a condenação à forca por puro instinto de sobrevivência.
Considero válidas todas as afirmações dos defensores da pena de morte e redução da maioridade penal, desde a que afirma que a situação atual é insuportável para uma sociedade que se diz civilizada, até à de que os menores estão sendo usados pelos chefes do crime para a prática dos delitos com os benefícios da nossa legislação para menores, passando pela nova, a do “caso Rio”, que há quem defenda seja considerado uma situação especial, em relação ao restante do país. Aceito tudo, até porque é tudo verdade, mas acredito que só podemos pensar em discutir questões dessa magnitude quando tivermos bases para isso, e só através da educação, da inclusão social e da reavaliação de nossos valores enquanto sociedade, de nossos deveres para com a construção e manutenção de uma sociedade realmente civilizada conseguiremos essa capacidade de discernir o que é papel do estado, da sociedade e do cidadão individualmente.
Antes disso, debater e, pior, defender, esses princípios, é defender o homicídio qualificado institucional, uma vez que estaremos dando ao Estado o poder de matar sem que seja oferecida às vítimas (os futuros condenados) a chance de defesa, o que só viria por meio da educação, que geraria a inclusão, que geraria uma sociedade mais humana, que geraria... Sem educação, porém, é fácil, pateticamente fácil, aceitar os argumentos das classes dominantes – sempre que estas se vêem ameaçadas –, de que estamos em guerra e devemos nos submeter a medidas excepcionais. E é justamente por saberem disso, que a massa é maleável e a tudo se molda, que eles, volta e meia, “reabrem o debate”.
Jornalista
Um comentário:
Mermão, achei o artigo excelente, pois expõe, de forma nua e crua, como pensam os nossos "representantes do Legislativo" federal.
Parabéns!
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