24 novembro 2007

A Testemunha

Karol Vital

Era o final de uma tarde de domingo quando o tédio superou a preguiça e impulsionou o meu corpo a dar uma volta pela Avenida Soares Lopes. Ao dizer que pensei em “dar uma volta” percebe-se que meus recursos financeiros no momento não estavam lá muito abundantes. Mas os ossos já doíam de tanto ficar no sofá. Estava quente, o céu e o mar limpinhos. Tinha que aproveitar os últimos raios daquele solzão bonito.

Acompanhada do meu marido, saímos sem rumo certo. Sentir a brisa nos nossos rostos, ver a criançada brincando de bicicleta, as senhoras metidas a “cocotinhas” caminhando com suas roupas de ginástica, os casais de namorados tomando sorvete... Este foi o momento em que a contemplação do cotidiano caiu por terra, dando lugar para a gula.

Estava quente, passei o dia inteiro enfurnada em casa, um sorvete não nos faria mais pobres. Sim, mas cadê o dinheiro? Lá fomos nós para calçadão, rumo ao Banco do Brasil para sacar a fortuna de dez reais. Com eu disse, a grana estava curta, não podíamos esbanjar. Seria só uma bolinha para saciar a vontade e adoçar o dia.

Saímos da agência meio apreensivos. As ruas estavam vazias, só ouvíamos os nossos passos e respiração. Cada metro que avançávamos era uma fuga daquele deserto ameaçador, povoado de trombadinhas ocultos. Quando passamos em frente à Associação Comercial de Ilhéus, vimos diversas VHS espalhadas pelo chão. “Arte de algum vândalo” – pensamos.

A rua estava caracterizada como uma perfeita cena de crime. Algumas VHS tinham as fitas magnéticas puxadas, outras estavam totalmente desmontadas, escangalhadas. Mas uma me chamou atenção, pois estava bem no meio da rua. Fiquei curiosa para ver o título do filme e, que ironia: A Testemunha.

Aquela VHS trazia em seu conteúdo um filme de 1982, que tratava de um assassinato testemunhado por uma jovem e seu filho, que passavam a ser protegidos por um investigador. Já a fita testemunhou um crime contra o patrimônio público, a cultura e a história. Ela não tinha quem a protegesse, havia sido jogada à sorte por causa do DVD. Virou lenda e lixo.

Fiquei pensando naquela testemunha ali no meio do asfalto. Que final triste teve a pobre VHS. Ela tinha a mesma idade que eu e estava sendo rotulada como velha! Um dia era disputada nas prateleiras da locadora e, no outro, estava estendida no chão, decrépita. A tecnologia foi mais impiedosa que o tempo. E a ignorância em descartá-la daquela forma, maior ainda.

A fita estava sendo a testemunha de como nossa sociedade vira as costas para aquilo que um dia teve valor. E não podemos achar que é diferente com os seres humanos. Como dizia a minha avó: “Quem foi é a mesma coisa de nunca ter sido”.

Karol Vital é comunicóloga

Um comentário:

Bel disse...

Que "pecado"... tudo bem, eu não tenho mais aparelho de vídeo-cassete, mas nem por isso me desfiz das minhas fitas.

Mas o que foi mesmo que aconteceu? Foi vandalismo puro ou era o lixo da locadora???