O jeitinho, a escola e os ovos podres de Boninho
Malu Fontes
A Tarde
O entrevistado da última edição do programa Roda Viva (TV Cultura/ SP – retransmitido pela TVE Bahia, canal 2), o sociólogo Alberto Carlos Almeida, vem dando o que falar desde o lançamento do seu livro A Cabeça do Brasileiro ( Editora Record, 280 páginas. R$ 42). Na teoria, é um livro que registra os resultados de uma pesquisa segundo a qual os valores morais e éticos de quem consegue acumular anos e anos de estudos são infinitamente superiores aos daqueles sem ou com baixa escolaridade. Até aí, nada demais.
A questão é que, na prática, o livro se transformou em uma arma usada pelos defensores das elites brasileiras, que só faltam dizer que, para o Brasil dar certo, só é necessário mesmo eliminar um pequeno detalhe: os pobres. O tom do debate, traduzido pelas perguntas e contra-argumentos vistos no Roda Viva, esquentou após a revista Veja afirmar, sustentando-se no livro, que "a elite nacional é o farol da modernidade".
Em tempos em que representantes de diferentes matizes ideológicas (e financeiras) se engalfinham e se ridicularizam entre si e em público por causa do movimento "Cansei", a tese de que somente os estudados e graduados são contra as mazelas do País não poderia dar em outra coisa senão em polêmica. Os dados de Almeida revelam que quanto mais pobre e desescolarizado, mais o brasileiro é tolerante e usuário de métodos morais condenáveis pelos mais estudados, como o velho jeitinho brasileiro de tirar vantagem, a tolerância com a corrupção e a conivência com os políticos que fazem a linha "rouba, mas faz".
FILTRO S – Ninguém em sã consciência é capaz de duvidar de que anos de escola dão uma diferença e tanto – pelo menos é isso que deveria acontecer – não apenas no comportamento dos indivíduos, mas na percepção dos valores morais e, sobretudo, na escala de oportunidades. Entretanto, o que o autor quer dizer com sua pesquisa é que, quanto mais pobre, mais conivente é o brasileiro com as bandalheiras. O fato é que, tanto representantes dos mais pobres como representantes das elites, independentemente de escolarização e dependendo do contexto e circunstâncias em que se inserem, demonstram na prática que não reprovam de todo uma série de práticas morais tidas como nocivas, mas comuns.
O que a pesquisa, e o livro, no entanto, esquecem de dizer é que quanto mais escolarizadas e graduadas são as pessoas, mais elas tendem a adquirir filtros quando se trata de se pronunciar sobre determinadas questões polêmicas ou consideradas hoje politicamente incorretas. Ou seja, os valores apreendidos pelos anos de escolarização e pela natureza da sociabilidade em que estão inseridas fazem com que pessoas graduadas tenham mais constrangimento de confessar preconceitos, de manifestaremse favoravelmente à corrupção e ao jeitinho e de professar o que de fato pensam sobre aqueles que consideram diferentes de si. Mesmo que na vida privada e íntima deixem o constrangimento e politicamente correto de lado e o façam com naturalidade.
OVOS E VAGABUNDAS – Uma segunda questão que o livro de Almeida deixa de fora é a qualidade da rede escolar brasileira, rede teoricamente universalizada da década de 90 para cá. A universalização aumentou de modo significativo o número de pessoas com acesso à escola, mas, simultaneamente, houve uma queda vertiginosa da qualidade do ensino oferecido. Em outras palavras: antes, poucos tinham acesso à escola, porém esta era qualitativamente boa. Hoje, muitos têm acesso a uma escola que, no entanto, é qualitativamente péssima. Em tese, substituiu-se a qualidade pela quantidade e, na prática, isso equivale a pessoas que, mesmo ficando algum tempo na escola, saem dela com um nível de apreensão de realidade nada substancial.
A principal conseqüência do livro A Cabeça do Brasileirosão as interpretações maniqueístas que dele se tem feito, ancoradas, em sua maioria, naquilo que, na prática, já se postula entre os círculos mais privilegiados. Ou seja, que os problemas do Brasil, da violência à corrupção, passando pelos desvios éticos e morais, devem ser, praticamente todos, depositados na conta dos pobres, analfabetos ou semi-alfabetizados. Se há parlamentar corrupto, o diagnóstico é: são os pobres e os não-esclarecidos que o elegem.
Difícil é explicar, segundo essa lógica da culpabilização da pobreza que norteia o livro por que razão jovens bem-nascidos e com uma pilha de anos em boas escolas e boas universidades saem por aí queimando índios, matando policiais (como ocorreu recentemente em Salvador), roubando carros e espancando prostitutas e domésticas. Um alto diretor da Globo, Boninho (responsável pelo BBB), declarou recentemente entre risos, num vídeo postado no YouTube, que costumava atirar ovos podres em "vagabundas".
É essa a elite faroleira da modernidade brasileira?
Publicado originalmente em A Tarde (02/09/07)
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