O juiz, a polícia e o malandro
Roberto Schuman*
Segunda-feira de carnaval. Saí de casa por volta das das 22 horas para encontrar a namorada na porta do Circo Voador, na Lapa. Ao chegar, deixei o táxi ao celular, para tentar localizá-la. Além de tênis, bermuda e camisa, usava um chapéu, desses vendidos em todos os cantos da cidade a 5 reais. Presente da namorada. Coisa de mulher.
Atravessei a rua e quase fui atropelado por um camburão, luzes e lanternas apagadas, com a inscrição Core (Coordenadoria de Recursos Especiais, unidade especial da Polícia Civil do Rio). No mesmo momento, o motorista gritou: “Ô, malandro!” Assustado, dei um pulo para a calçada, pedi desculpas e virei as costas, ainda ao celular.
Percebi, então, que a viatura andava ao meu lado, com três policiais de preto. E escutei, em alto e bom som: “Saia da rua, seu malandro e bêbado!” Neste momento, reagi. Isso não é jeito de tratar as pessoas na rua. “Não sou bêbado nem malandro. Se vocês não estiverem em operação, está errado andarem com essa viatura preta e apagada, pois quase me atropelaram e vão acabar ferindo alguém!”
Foi a oportunidade que queriam. Os homens de preto desceram da viatura: “Ô, malandro, tu é abusado e tá preso”. Ato contínuo, diante da voz de prisão, estendi os dois braços para ser algemado. Pergunto ao mais novo dos três, que estava completamente alterado: “Qual o motivo da prisão?” Resposta: “Desacato”. Insisto: “O que os senhores entendem por desacato?” Resposta: “Até o DP a gente inventa, se a gente te levar pra lá”.
Percebi a gravidade da situação e disse: “Estou me identificando como juiz federal e minha identificação funcional está dentro da minha carteira, no bolso da bermuda”. Imediatamente, o policial novinho, que se identificou como André e no DP disse ser Cristiano, meteu a mão no meu bolso, pegou a minha carteira e a colocou em um dos bolsos de sua farda preta. Então, o impensável aconteceu! Disseram: “Juiz federal é o c... Tu é malandro e vai para a caçapa do camburão”.
Fui atirado na mala do camburão como bandido, algemado, com o celular no bolso. Os três policiais do Core diziam que, no máximo, eu deveria ser “juiz arbitral ou de futebol”. Temi pela vida. Por incrível que pareça, veio-me aquela frase de Dante, da obra Divina Comédia: “Abandonai toda esperança, vós que entrais aqui”.
Sem perder as esperanças, mesmo algemado, peguei o celular do bolso e liguei para a assessoria de segurança da Justiça Federal. Informei a situação, bem baixinho. Que não sabia se seria levado ou não ao DP. Pedi para acionar a Polícia Militar e localizar a viatura do Core que circulava pela Lapa comigo algemado.
Após o telefonema, disse-lhes uma única coisa, ainda na viatura. “Vocês estão cometendo crime.” Eles zombaram aos risos: “Juiz federal andando com esse chapéu igual a malandro. Até parece. Se você for mesmo juiz, a gente vai chamar a imprensa, pois juiz não pode andar como malandro”.
Na delegacia, as gracinhas dos policiais continuaram: “Olha o chapéu do malandro”. Já me sentindo em segurança, revidei. “Vocês querem que eu tire o chapéu e vista terno e gravata?” O fato é que, na presença do delegado, as algemas foram retiradas. Vinte minutos depois, um dos policiais de preto veio ao meu encontro: “Excelência, desculpas. Nós agimos mal, podemos deixar por isso mesmo?”
Respondi: “Primeiro, não me chame de excelência, pois até há pouco eu era malandro. Segundo, não. Não pode ficar por isso mesmo. Como é que vocês tratam assim as pessoas na rua, como se fossem bandidos? Terceiro, vocês três não honram a farda que vestem. Quarto, desde a abordagem policial, agi apenas como cidadão e fui desrespeitado. Depois de ter me identificado como juiz federal, fui ainda mais ofendido. Logo, houve um crime de abuso de autoridade seguido de outro de desacato.
O circo foi montado pelo próprio agente Cristiano, que ligou do interior do DP para os repórteres, de forma incessante. Talvez temesse que ele e seus dois colegas de farda preta fossem presos por mim no interior do DP. Decidi não fazê-lo, porque em nada prejudicaria a instauração de procedimento administrativo na Corregedoria da Polícia Civil, bem como a ação penal por abuso de autoridade e desacato, sem mencionar o dano à minha pessoa, como cidadão e magistrado.
“Se como juiz federal fui ameaçado por três homens de farda preta com pistolas automáticas, algemado e jogado como um bandido na mala de um camburão, simplesmente por tê-los repreendido, de forma educada, como convém a qualquer pessoa de bem, o que aconteceria a um cidadão desprovido de autoridade e conhecimento dos seus direitos?”
De minha parte, duas coisas estão claras. Não permitirei nada passar em branco, pois são fatos sérios e graves que partiram daqueles que têm o dever de zelar pela segurança da sociedade. E, no próximo carnaval, não usarei o presente da namorada, o tal chapéu. É perigoso. Pode ser coisa de malandro.
Roberto Schuman é cidadão e juiz federal no estado do Rio de Janeiro
(Publicado originalmente pela revista Carta Capital, 15/02)
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